"Você tem um burnout. Uma extrema exaustão emocional, física e psicológica."

Há cerca de 3 anos atrás foi-me diagnosticado um burnout severo, uma depressão major e perturbação de ansiedade. Há cerca de 3 anos atrás a minha vida deu uma volta de 180 graus.

Tenho um grave déficit de atenção despoletado pela situação de burnout e não sou capaz de ler um livro ou ver um filme porque me esqueço do que se passou anteriormente. Esqueço-me da comida ao lume e já ia pegando fogo à casa. Houve dias em que eu não soube voltar para casa porque não sabia onde estava (bendito Google Maps que me trouxe de volta).

Mais do que uma despedida, deixo-vos com a minha experiência na primeira pessoa para que, se alguém que Vos é próximo sofrer ou vier a sofrer desta doença invisível aos olhos, evitem dizer-lhe "Mas tu queixas-te de quê?", "Tens tudo para ser feliz", "Coitados são aqueles que perderam uma perna ou têm uma doença terminal" ou "nem todos se podem dar a esse teu luxo de ser infeliz". Ouvi isso quase diariamente e sentia-me ainda mais estúpida, porque eu acreditava que isso era tudo verdade.

É dificil explicar a quem nunca passou por isto o enorme buraco negro que se instala na alma, e em como é impossível antever a sua dimensão até chocarmos com ele de frente. É assustadora a quantidade de lágrimas que temos dentro de nós. Assustadora.

Quando nos dói um dente ou a cabeça, quando o coração bate descompassadamente, quando a dor é física, rapidamente atuamos e vamos ao médico ou tomamos medicação. Nestes casos, mesmo com todos os sinais de alarme acesos, pensamos que "é apenas uma fase", "que damos a volta a isto", "na nossa cabeça mandamos nós" e que vamos arranjar forças apesar de já não sabermos onde. E quando percebemos que tudo isto está errado, é tarde demais; estamos completamente impotentes para encontrar o caminho de regresso numa espiral sem saída.

As dores de cabeça eram indescritíveis, vomitava todos os dias de manhã antes de sair de casa, deixei de conduzir com o rádio ligado porque não conseguia concentrar-me na condução, dava comigo em sítios sem ter a mínima ideia como lá tinha ido parar. Não suportava o barulho. Ainda hoje, há barulhos que dão comigo em doida.

Ao contrário das dores físicas que rapidamente se atenuam com a medicação, a cura aqui não está ao virar da esquina. É um percurso longo, sinuoso, escuro e, acima de tudo, solitário. Tão longo e solitário que tudo se torna irrelevante e somos invadidos por um desespero, uma escuridão, um buraco negro e uma tristeza profunda que persistem até hoje.

Do ponto de vista pessoal torna-se difícil conviver com alguém para quem a esperança é uma coisa horrível de se ter. Alguém que vive um dia de cada vez. Alguém que à sua volta só vê escuridão.

Quis ter um cancro em vez de um burnout. As pessoas que têm cancro agarram-se à vida, lutam até ao fim das suas forças porque acreditam. A depressão tira-nos a esperança e o amor-próprio

Porque num cancro, as pessoas assistem à nossa degradação e são solidárias connosco. Mas quando temos um burnout, uma depressão, tudo é desvalorizado porque tudo é invisível aos olhos; tal e qual a fruta que só está podre por dentro. É muito fácil ser feliz à superfície, basta arredondar os cantos da boca para cima.‌‌

Tenho plena consciência que jamais voltarei a ser quem era. Tudo isto é um enorme exercício de humildade.‌‌

Várias vezes me perguntei como é que isto me aconteceu a mim, uma pessoa que vivia confortavelmente, reconhecida e premiada em todas as empresas onde trabalhei, com anos e anos de experiência na área, com uma família espetacular. Como me pude dar ao luxo de cair nesta armadilha?‌ A resposta, no entanto, não está em "como é que isto me aconteceu" mas sim "porque é que isto me aconteceu".‌‌

Percebi que isto cresce num espaço que existe dentro de cada um de nós e que separa aquilo que somos, intrinsecamente, daquilo que transparecemos para conseguir fazer o que fazemos e atingir os objetivos a que nos propomos. E por razões que conhecemos ou desconhecemos esse espaço começa a aumentar devagarinho e leva-nos a uma espiral sem saída. Este espaço transforma-se num vazio interior, num enorme buraco negro que nos faz implodir. Acreditem quando vos digo que a implosão provoca danos muito mais graves do que a explosão. ‌

Percebi que tinha perdido o controlo e que o copo há muito tinha transbordado no dia em que dou por mim em plena autoestrada e vejo uma placa que assinala a saída para Leiria. Não faço a mínima ideia de como lá fui parar nem quanto tempo conduzi num completo estado de ausência e alienação.‌‌

Agradeço do fundo do coração ao meu psiquiatra, que me salvou a vida. No dia em que entrei no seu gabinete e lhe disse "ajude-me porque vou dar um tiro na cabeça", disse-me que eu tinha de parar imediatamente pois estava a dar um péssimo exemplo aos meus filhos. Porque a educação também é dada pelo exemplo e que um dia, se os meus filhos chegassem a um igual nível de sofrimento pensariam "eu não vou parar porque a minha mãe nunca parou".‌‌

Também me disse que a depressão é uma das principais causas de morte e que apesar de haver mais mulheres com depressão, são os homens que mais se suicidam porque a sociedade nos ensina, desde sempre, que os homens não choram e por isso têm mais vergonha em pedir ajuda. E que antes de eu pensar em cometer uma loucura, que pensasse igualmente nos meus filhos que, num momento de igual sofrimento indizível, iriam pensar "posso fazê-lo e vou fazê-lo, porque a minha mãe também o fez. Porque só assim ela encontrou a paz". Para os que ficaram com dúvidas a resposta é "sim, tive pensamentos suicidas".‌‌

Trabalhamos que nem cães para termos dinheiro para comprar o que não precisamos, porque daí retiramos 10 minutos de felicidade. Mas quando descobrimos que podemos tropeçar na morte a qualquer instante, percebemos que não temos todo o tempo do mundo e que no final espera-nos a todos a fria, escura e desconhecida eternidade.‌‌

Quando morrermos, até podemos ir aconchegados num caixão forrado a notas de 100, mas na verdade não seremos nem mais ricos nem mais pobres que a sepultura ao nosso lado ou que as últimas cinzas que jazem no crematório. Seremos iguais.‌‌

É quando estamos com a cabeça entre as mãos que percebemos que dominar a alma não é a mesma coisa que dominar o corpo. Mas é nesse momento que se juntam a nós os que nunca mais nos abandonarão e nos ajudarão no processo de reconstrução. É nesse momento que nos forçamos a dizer adeus a muitos outros que, apesar de irem fazer sempre parte de nós, temos de deixar para trás para poder seguir caminho.‌‌

A minha vida fica marcada pelo burnout. Até lá, eu dizia aos meus filhos que se se esforçassem conseguiriam tudo o que quisessem e que o mundo só tinha lugar para os melhores. Agora digo-lhes que somos momentos e que o importante é serem felizes.‌‌

Digo-lhes que a vida se rege por três bens escassos: o tempo, a atenção e a confiança. São os mais valiosos, pois são precisamente aqueles que não há dinheiro que os consiga comprar. Mas a boa notícia é que os conseguimos dar. Infinitamente. Nunca se esgotam porque nascem de dentro de nós. E é incrível como podemos semear a felicidade alheia de forma gratuita: Com tempo, com atenção e com confiança. É com esta equação de valores próprios adquiridos na infância e na qual a variável dinheiro não existe, que nos tornamos seres únicos.‌‌

Digo-lhes que devem respeitar os que os respeitam e esquecer os que os esquecem. Será sempre difícil suportar os fúteis; os que falam mas não agem; os que nos esquecem sem entendermos o porquê. E que devem escutar aqueles que os fazem respirar fundo e pensar na resposta. Não porque não a saibam, mas porque os obriga a procurá-la onde custa mais – cá dentro.‌‌

Digo-lhes que ao longo da vida só às vezes fazemos o que gostamos de fazer. Muitas outras temos de fazer o que temos de fazer. Mas sempre que pensarem em desistir, ou se tiverem aqueles momentos em que se perguntam quanto tempo mais vão aguentar aquilo que já não conseguem suportar, que se lembrem que basta um pequeno balde de plástico para se fazerem grandes castelos.‌‌

Por último, que nunca se esqueçam que, desprovidas de significado e de valor, as palavras são apenas coisas. E o mundo já está cheio de coisas.‌‌‌‌

Nada na vida é certo. Nem nós.