Hoje tive um sonho. Era uma manhã de um dia de semana esquecido no tempo, numa sala fria com pouca luz onde estavam meia-dúzia de pessoas em redor de uma mesa. Chovia lá fora e o ambiente era pesado. No centro da mesa o Croupier, de pequena estatura, dizia em voz grave e pouco firme:

- "Les jeux sont faits; rien ne va plus!".

Os jogadores entreolharam-se entre si. Apesar do esforço para disfarçar o seu próprio nervosismo e as tentativas falhadas para afirmar a sua posição de destaque à mesa, todos sabíamos que o Croupier, que este pequeno Croupier, não passava de um mero distribuidor de jogo que sonhava poder ter na sua voz grave a coragem e o poder de alterar a sua decisão ou a jogada em movimento.

A bola, na sua cega roleta russa, saltava furiosamente entre as casas vermelhas e pretas enquanto os jogadores à volta da mesa aguardavam, taciturnos, o veredicto final.

Dei por mim a observar o pequeno Croupier em frenético movimento e apercebi-me de como era patético. Patético na sua postura de quem está a assumir o controlo de uma situação que está entregue ao destino ditado por deuses menores. Patético por ser incapaz de perceber - ou de querer perceber - que o "verbo parecer" e o "verbo ser" só são semelhantes na sua terminação e conjugação (e raras são as coisas que são o que parecem) mas, e acima de tudo, patético por tentar passar a todos nós, jogadores de longa data habituados a bluffs e a jogadas de risco, a imagem de um inteligente leitor de jogo quando, na realidade, não passava de um simples distribuidor comandado por malabarismos que ele próprio não conseguia dominar.

E à memória vêm-me as imagens das tardes de domingo passadas em frente à televisão, com o meu Pai, a ver o Benfica a jogar, nas quais ele sempre me dizia "Presta atenção ao camisola 10, é sempre o jogador chave. É o que faz a leitura de todo o  jogo". Impossível não recordar, passados todos estes anos, a imagem de Rui Costa a correr com a bola sempre controlada nos pés, de cabeça de erguida a ler a posição dos adversários enquanto adivinhava a sua movimentação para só então fazer a jogada final, para o jogador melhor posicionado em campo. A jogada vencedora.

É desta fibra que os verdadeiros líderes são feitos. A capacidade de lerem o jogo e perceberem qual o jogador em campo mais bem posicionado para marcar ou, simplesmente, dar o melhor seguimento à jogada.

- "Les jeux sont faits; rien ne va plus!".

Disse novamente o pequeno Croupier olhando-me por baixo das fartas sobrancelhas alertando-me que a jogada estaria prestes a terminar e que, assim que a malfadada bola parasse, o futuro estaria decidido sem qualquer hipótese de retorno.

Confesso que senti alguma dificuldade em disfarçar um sorriso. Olhei-o nos olhos e lembro-me de pensar que o que está feito não pode ser desfeito, mas que o que está perdido pode sempre ser reencontrado. No jogo, e na vida.

Há dias que penso que as gerações de hoje perdem todo o divertimento de infância mergulhados em consolas a degladiando-se contra monstros e perigos tais; mas as lutas com monstros sem cabeça, sejam eles reais ou escondidos debaixo da cama, pertencem ao mundo dos adultos. Não ao universo infantil.

Foi na infância que aprendi as lições mais valiosas de vida. Quer as ensinadas pelo meu Pai relativamente ao camisola 10 de qualquer equipa de futebol, quer as tardes passadas em frente à TV enquanto Karpov e Kasparov olhavam horas a fio para um tabuleiro de xadrez tentando adivinhar as jogadas futuras que a eles próprios protegiam.

A tua função, pequeno Croupier, não se pode limitar à mera distribuição de jogo mas à sua correcta leitura. Saber que a vida, tal como o xadrez, é um jogo de estratégia na qual é preciso saber movimentar os peões para conseguir tirar os cavalos e os bispos do caminho. Mas isto não implica de todo sacrificá-los.

Eu sei, meu pequeno Croupier, que estás habituado apenas a rolar a roleta e a distribuir o jogo. Mas é teu dever e tua obrigação ver tanto mais quanto a tua disponibilidade de ver. E tens de perceber que a fibra de que são feitos os grandes generais de batalha é precisamente a leitura cuidadosa do tabuleiro e a capacidade de perceber que, tal como no xadrez, a melhor defesa não é o ataque. É perceber porquê.

Ouvi o som da bola parar e a casa vermelha assinalava a minha jogada. Há momentos assim na vida, em que nos sentimos tão próximos do destino que nos é traçado e que não comandamos, que tudo o resto nos parece irremediavelmente inútil.

Hoje tive um sonho. Não, hoje não tive um sonho.

Como disse Dorothy, no feiticeiro de Oz: "Toto, I've a feeling we're not in Kansas any more".