"Odeio geografia." pensei eu enquanto o seguia, contrariada, em direção ao quarto. E lembrei com saudade o dia em que fui para a rua numa aula de geografia do liceu por fazer comparações idiotas entre os Trópicos de Capricórnio e Caranguejo e os respectivos signo do Zodíaco. Ainda hoje acho que só não fiquei de castigo até aos 75 anos porque a minha Mãe não assistiu às piadinhas.

Deitei-me na cama de Simão, fiz um ar atento, e deixei-o começar a debitar orgulhosamente todas as definições cartográficas do livro. Pontos cardeais, colaterais e intermédios. NorNordeste. As latitudes, as longitudes, os paralelos e afins.

A voz de Simão eleva-se, arrancando-me do estado letárgico da lembrança dos dias despreocupados do liceu, com a definição de "Localização Absoluta":

Ponto de convergência entre a latitude, longitude e a altitude que nos dá as coordenadas únicas no espaço, para qualquer local do globo terrestre.

Pedi-lhe para repetir. Não porque estivesse errada, mas porque me lembrei de ti, Leonor, no dia em que entraste pela primeira vez em minha casa, numa festa de Natal de amigos comuns.

Conhecias pela primeira vez a confusão destas tradicionais festas onde havia sempre um de nós a encarnar todo o espírito natalício dentro de um Pai Natal, também ele encarnado, escolhido à força no grupo quase na base do pim-pam-pum.

"Este ano é o meu Pai!!", gritava sempre um dos miúdos em pleno êxtase apesar de todos nós fingirmos que era o verdadeiro velhote em pessoa, que nos tinha em tão boa consideração que arranjava tempo na sua louca agenda para fazer uma distribuição precoce de presentes. "Cala-te! Olha que o teu irmão ainda acredita!" - berrava sempre um dos pais do delator certificando-se que a sua voz se sobrepunha ao caos instalado.

Confessa que, por momentos, nem que tenha sido por breves momentos, achaste que os Deuses tinham ficado loucos e havias caído, qual Alice no País das Maravilhas, num mundo encantado cheio de personagens mirabolantes.

Se queres que te diga muito sinceramente, minha querida e adorada Leonor, os Deuses não só estão loucos como também jogam aos dados. E ainda fazem batota, quando das mangas das suas supostamente imaculadas túnicas sacam os Ases de Espadas que nenhum de nós esperava. Os Deuses, que do alto do pedestal onde eles próprios se colocaram e que a eles próprios se adoram, nos fizeram à sua imagem apenas porque são narcisistas. Não porque pretendam ser tomados como um exemplo a seguir, mas porque não passam de "Glória de mandar e vã cobiça".

E com este excesso de vã cobiça nos fizeram imperfeitos, mas com uma capacidade incondicional de amar, de querer bem e proteger aqueles que nos enchem o coração num ponto onde a longitude, latitude e altitude se intersectam: um ponto único, numa localização absoluta que faz de cada pessoa aquele ser tão raro e especial: um amigo.

No dia em que te conheci, o teu nome fez-me recordar a heroína de Camões que formosa, mas não segura, ia descalça para a fonte. Hoje, passados todos estes anos, sei que és a Leonor que segue a vida sempre formosa, mas também sempre segura, em quem "chove graça tanta que dá graça à formosura", que se prepara para uma aventura em mares nunca dantes navegados e onde a tua coragem e resiliência vão acima de tudo realçar a heroína que há em ti, que apesar do medo que por certo sentes e que acredito que encerraste bem no fundo de ti, num desses lugares onde não existem coordenadas que o possam definir, mostrarás uma vez mais que apesar do medo és capaz de enfrentar desafios superiores ao poder e à vontade dos Homens.

E escrevo-te hoje, Leonor, para que saibas que sempre que achares que precisas de ligar o GPS da tua alma se acenderá a luz que indicará as coordenadas do nosso porto seguro, onde me encontrarás sempre. Onde no meio de gargalhadas, brincadeiras parvas e frases sem sentido nos lembraremos que os moinhos de vento podem muitas vezes até parecer gigantes cruéis, mas não passam disso mesmo: de moinhos de vento que no final dão lugar aos verdadeiros heróis.

Como tu, Leonor.