Ontem cheguei ao escritório e tinha um papel que dizia "para te lembrares da verdadeira importância das coisas". Por cima, as fotografias de Simão e Simone.

Sentei-me.

Há dias que nos ficam na memória para sempre. Há dias do nosso passado que nos ficam de tal forma gravados que chegamos a duvidar se o momento que temos guardado não veio acompanhado do som cliché que ficou para sempre associado às máquinas fotográficas da nossa infância: aquelas Kodak velhinhas e já fora do radar das recordações dos nossos filhos onde um rolo de 36 fotografias era religiosamente poupado durante as férias de verão para mais tarde recordar os momentos mais preciosos e especiais; momentos esses que aguardavamos ansiosamente pela revelação na loja de fotografias de esquina.

Hoje em dia, recordar momentos passados deixou de ser especial e precioso. Todos os momentos são descartáveis, comuns, iguais a todos os outros e sobretudo partilháveis, porque estão sempre sempre ao alcance de um qualquer smartphone para uma qualquer rede social. Deixaram de ser secretos e só nossos. Não ficou bem? Apaga. Trata a imagem com o filtro que me faça parecer melhor, me faça parecer ainda mais feliz, mais invejada(o).

Quando eu era pequena, as fotos nas quais o dedo tapava parte da câmara acabavam por ser as mais divertidas, aquelas que ainda hoje quando desfolhadas no álbum de fotografias guardado em casa dos nossos pais nos fazem reviver o momento em que a mesma foi tirada ficou assim porque tive de fugir da onda, lembras-te? (recordamos nós no meio de uma gargalhada).

Hoje, por não serem perfeitas, por não permitirem partilhar um momento perfeito, feliz e invejável pelos olhos da nossa rede de (supostos) amigos faz com seja automaticamente apagada. Descartada. Ignorada. Perdida para sempre. Pensando bem, muito pouca coisa separa as pessoas das fotografias digitais nestes primórdios do século XXI onde gostamos de brincar aos seres minimamente inteligentes e avançados. Nunca nada é para sempre. Nem as recordações. Nem ninguém.

É quando menos esperamos que nos cruzamos com momentos que nos ficam gravados para sempre. Tal como no fim de semana passado, quando no meio de uma fila de trânsito já meio adormecida pelo calor dentro do carro e pela luz do Sol que refletia no mar, oiço a voz de Simone que diz: Vai com cuidado Mãe. Se tens um acidente és tu que morres mais. Nesse momento, do fundo de toda a sua racionalidade, ouvi Simão a gritar eh ca burra! não se morre mais ou morre menos. Morre-se e pronto.

Sempre acreditei que a vida vista e interpretada pelos olhos de uma criança vai perdendo a sua virtude à medida que crescemos e nos tornamos adultos, altamente compartimentados pelas solicitações de uma sociedade que só sabe lidar com multidões de ideias pré-concebidas. E foi impossível não deixar de pensar sobre esta frase que me ficou na cabeça, e sobre a qual guardei inicialmente breves reticências:

"(...) és tu que morres mais."

Sempre nos ensinaram que a vida é um interruptor. Sem possibilidade de meio-termo. E precisamente por isso nos é tão difícil encarar a ideia da morte. Por isso é que conhecê-la seria sempre um choque por mais preparados que possamos estar para a confrontar.

A verdade é que o destino, a existir, nunca será bondoso ou clemente para connosco e cabe-nos a nós conquistar o seu respeito para com as nossas virtudes e as nossas fraquezas, como seres humanos que somos.

A frase de Simone, dentro da sua inocência infantil, tem a resposta às perguntas que já fiz a mim própria vezes sem conta. E a verdade, é que morremos tantas vezes ao longo da vida, que quando a morte física nos bate à porta talvez só seja preciso deixarmo-nos ir. Esta só será mais dolorosa para os que nos amam, que ficarão sem nós e nos revisitarão nas fotografias perfeitas ou imperfeitas, consoante o século em que foram tiradas. Porque nós, que a enfrentaremos, já a vencemos tantas vezes, já a enfrentámos outras tantas em silêncio, já morremos um pouco dentro de nós em tantos momentos, já gelámos, já esquecemos, já dissemos vezes sem conta:

"não faz mal, eu não também não me entendo".

E o melhor é sermos genuinamente imperfeitos, como as 36 fotografias do rolo da Kodak que nos fazem relembrar os momentos caricatos em que foram tiradas. São precisamente as nossas loucuras, os momentos que nos distinguem dos demais. Momentos e pessoas perfeitas, não são eternos. São como o vento. Passam por nós sem deixar rasto.