O outono já se adivinha. Hoje, quando saí, não só o frio já se fazia sentir como o sol se escondia num céu pintado de nuvens de uma cor rosada. Já não é dia até à noite como costuma dizer Simone na sua linguagem de criança para explicar que a tarde já não entra pela noite dentro.

Este fim de tarde parece uma fotografia. E a fotografia não é criada apenas com uma máquina. É criada sobretudo a partir das recordações dos livros que lemos, dos filmes que assistimos, das músicas que ouvimos e com pessoas que amamos. É conseguir enquadrar no mesmo espaço a alma, o coração e a cabeça.

Olhei à minha volta e imaginei todo este cenário como a fotografia perfeita, com a luz perfeita. Com o alinhamento perfeito entre a alma, o coração e a cabeça que, apesar de diferentes conhecem e reconhecem as fronteiras que os separam.

Este fim de tarde parece retirado do livro "A insustentável leveza do ser" no qual o autor descreve um final de tarde semelhante dizendo  que as "As nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da nostalgia. Até a guilhotina".

Tudo o que é perfeito é invejável e passa a ideia de ser fácil de atingir. Numa história perfeita, os aplausos finais são sempre muito menores do que quando o personagem principal tropeça algures durante o enredo. Porquê? Porque os que assistem à peça só aí se apercebem das dificuldades das coisas, da altura dos obstáculos e da adversidade dos caminhos. E é aí que percebemos o que somos, e somos o que esse personagem também é.

A vida é cheia de mal-entendidos, aliás, muitos que não dá para evitá-los. Não basta só pedir desculpa: é preciso algo mais para que a mágoa que eles nos causaram não faça estragos a ponto de tudo o que nos rodeia parecer ser de mentira.

Acreditemos ou não, por mais que possam existir dores físicas insuportáveis, poucas superam as dores na alma.

As dores na alma têm a perversa particularidade de doerem baixinho e, por não serem tangíveis, são perigosas ao nos deixarem acreditar que podem ser facilmente derrotadas. São perigosas, porque crescem invisivelmente numa luta cega connosco até se transformarem em algo que, quando nos domina, já é tarde demais. Já nos absorveu por inteiro sem que ninguém, nem nós próprios nos tenhamos apercebido da força dessa onda que se formava no horizonte e se preparava para rebentar dentro de nós e nos dominar qual feiticeira de unhas aduncas. Assim. Automagicamente.

A parte boa é que, ao contrário das dores físicas, é  muito mais fácil camuflá-la com um simples sorriso no rosto. Não há dores na superfície de nós, onde é tão fácil ser perfeitamente feliz.

O mundo em que vivemos está cheio de nuvens alaranjadas iluminadas pelo encanto da nostalgia. Mas tudo tem o seu avesso.

Talvez, um dia me encontre.